quinta-feira, 21 de março de 2013

Poesia Açoriana


Em jeito de evocação do “Dia Internacional da Poesia” deixo aqui uma mão cheia de poemas de autores açorianos. Poemas do mar, da  terra, do isolamento, da saudade, impregnados  de uma atmosfera  de insularidade e de um sentir próprios do alma açoriana.
I
O mundo físico e humano das ilhas, a condição vivencial do  ilhéu: a sua ligação ao mar como prisão e destino, a monotonia dos dias parados, a miragem de horizontes distantes para além do mar e do céu.
ILHA
Só isto:
O céu fechado, uma ganhoa
pairando. Mar. E um barco na distância:
olhos de fome a adivinhar-lhe à proa
Califórnias perdidas de abundância.
       Pedro da Silveira  (1922-2003), A Ilha e o Mundo (1952)

SINFONIA DE COR
Sempre defronte
de mim
o mar azul, o mar imenso, o mar sem fim,
todo igual e azul até ao horizonte.

Neste dia delirante
de luz crua a jorrar, intensa, lá do alto,
uma vela distante
mancha de branco o seu azul-cobalto.

Um traço de espuma branca
junto à penedia
marca a linha da costa em enseada franca.

E a nota branca
das gaivotas em bando,
esvoaçando
à revelia,
e um ritmo novo de alegria,
de ruído e de graça.

Perto uma vela passa,
lenço branco a acenar...

Não ter asas também para poder voar
aonde me levasse a minha fantasia!
E ser gaivota e mergulhar
na água e bater asas,
alegre, todo o dia!

Poisar nos calhaus negros, que são brasas,
brasas negras a arder,
e ver aos pés a referver
aos borbotões de espuma.

Dar um grito e subir,
subir alto e distante,
já quando a terra se esfuma
e o mar aumenta, quanto mais avante.

Partir!

Partir para o delírio das alturas,
só, entre o céu e o mar,
longe do mundo e mais das criaturas.

Ah! Não ter asas e poder voar
de alma desvairada,
entontecer-me de espaço...

– Nota branca riscada
entre o azul do céu e o azul do mar.

Depois voltar
para ver
o sol morrer
num clarão de fogueira,
incendiando o céu, metalizando o mar...

E ver a noite abrir
o regaço
para deixar cair
uma a uma as estrelas.

Adormecer a vê-las...

Depois sonhar,
num delírio de cor, a noite inteira.
 Armando Cortes-Rodrigues ( 1891-1971)
In: http://martadutra.blogspot.pt/2007/07/sinfonia-de-cor-armando-cortes.html

ROCHA DO MAR
Ao Armando Santos, primo e poeta
Já uma vila dos Açores 
Luze ligeira no horizonte. 
Será num alto das Flores, 
No Pico ou logo de fronte, 
Espraiadinha num cume 
Ou encolhida em Calheta? 
O ser nossa é que resume 
Seus amores de pedra preta. 
Para vila da Lagoa 
Falta-lhe a cidade ao pé, 
A distância de Lisboa 
Já não me lembro qual é. 
Para Vila Franca ser 
Falta-lhe o ilhéu à ilharga, 
É airosa pra se ver, 
Mais comprida do que larga. 
Povoação não me parece, 
Nos padieiros não condiz, 
Aos camiões estremece, 
Mas não aguenta juiz. 
Pra Ribeira Grande falta-lhe 
O José Tavares no quintal, 
Rija cantaria salta-lhe 
Dos cunhais, branca de cal, 
Mas não é Ribeira Grande: 
Essa merecia foral! 
No dia em que haja quem mande 
Será cidade mural. 
Nordeste - só enganada 
Na vista da Ilha Terceira, 
Longe de Ponta Delgada, 
Sua sede verdadeira. 
Nem Vila do Porto altiva, 
A mais velha da fiada, 
Em suas ruas cativa 
Como princesa encantada. 
De cimento a remendaram, 
Coroaram-na de aviões, 
Mas eternos lhe ficaram 
Os bojos dos seus tàlhões. 
Se é a Praia da Vitória 
Não lhe reconheço a saia: 
Enchem-lhe a areia de escória, 
Ninguém diz que é a mesma Praia. 
Talvez seja Santa Cruz 
Da Graciosa, ou a sua Praia, 
Com o Carapacho e a Luz 
Cheirando a lenha de faia. 
De S. Jorge a alva Calheta 
Ou a clara vila das Velas, 
E o alto, alvadio Topo 
Com um monte de pedra preta 
Dando realce  janelas. 
As Lajes ou o Cais do Pico, 
A escoteira Madalena 
Vilas são de vinho rico, 
Qual delas a mais morena. 
Santa Cruz das Flores seria 
Essa vila açoriana 
Ou as Lajes de cantaria 
Do bom Pimentel soberana. 
Finalmente, só o Rosário, 
Que do Corvo vila é, 
Pequena como um armário 
Ou um chinelinho de pé. 
Mas não é nenhuma delas, 
Nem Água de Pau, que o foi, 
S. Sebastião, ou Capelas, 
Da Terceira arca de boi 
Como a nossa Vila Nova, 
Que nem chegou a ser vila, 
Tão branca na sua cova, 
Tão airosa, tão tranquila. 
Ah, já sei! É delas, fundo, 
Que o muro alvo se perfila 
Contra os corsários do mundo 
Que invejam a nossa vila, 
Nosso povo, na folia 
De uma rocha de mar bravo, 
Que o Guião da autonomia 
Só por morte torna escravo.
                                                        Vitorino Nemésio (1901 – 1978)  In: http://www.rea.pt/forum/index.php?topic=420.5;wap2

A  CAMINHO DO CORVO
À Maria Gabriela e ao Rodrigo,
primos filiais
A minha vida está velha
Mas eu sou novo até aos dentes.
Bendito seja o deus do encontro,
O mar que nos criou
Na sede da verdade,
A moça que o Canal tocou com seus fantasmas
E se deu de repente a mim como uma mãe,
Pois fica-se sabendo
Que da espuma do mar sai gente e amor também.
Bendita a Milha, o espaço ardente,
E a mão cerrada
Contra a vida esmagada.
Abençoemos o impossível
E que o silêncio bem ouvido
Seja por mim no amor de alguém.
Vitorino Nemésio( 1901-1978).  Sapateia Açoriana
In: https://sites.google.com/site/nemsodelivros/lugar-a-vitorino-nemesio

AZOREAN TORPOR
Onde a vaga retumba eram as obras do porto:
Roldanas, guinchos, cais, pedras esverdeadas
E, na areia da draga, ao sol, um peixe morto
Que vê passar na praia as damas enjoadas.

A cidade? Esqueci. Um poeta é sempre absorto;
De mais a mais – talvez paragens abandonadas.
O que é certo é que entrei um dia naquele porto
Em que as próprias marés parecem arrestadas.

Porque a mais leve luz que se embeba na Barra
Embacia os perfis dos cais e dos navios
Em frente à linha do horizonte que se perde.

E um desconsolo, um não-partir paira nos pios
Das gaivotas sem céu que o vento empluma e agarra
Estilhaçando o arisco mar de vidro verde.
Vitorino Nemésio (1901 – 1978), O Bicho Harmonioso
In: https://sites.google.com/site/nemsodelivros/lugar-a-vitorino-nemesio

O PAÇO DO MILHAFRE
À beira da água fiz erguer meu Paço
Da Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.

Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.

Enchi nfusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.

Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.
Vitorino Nemésio (1901 – 1978),O Bicho Harmonioso.
In:  
http://palavrastantas.blogspot.pt/2005/05/pao-de-milhafre.html

A  CONCHA
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.


Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.


E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.


A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio (1901 – 1978), O Bicho  Harmonioso. In: http://www.jornaldepoesia.jor.br/vito01.html

NATAL DAS ILHAS
Natal das Ilhas. Aonde
O prato do trigo novo,
A camélia imaculada,
O gosto no pão do povo?
Olho, já não vejo nada.
Chamo, ninguém me responde.

Natal das Ilhas. Serão
Ilhas de gente sem telha,
Jesus nascido no chão
Sobre alguma colcha velha?

Burra de cigano às palhas,
Vaca com língua de pneu,
Presépio girando em calhas
Como o eléctrico, tu e eu.

Natal das Ilhas. Já brilha
Nas ondas do mar de inverno
O menino bem lembrado,
Que trouxe da sua ilha
O gosto do peixe eterno
Em perdão do seu passado.
Vitorino Nemésio (1901 – 1978), Sapateia Açoriana   
 In: http://blog.lusofonias.net/?p=6590

CORRESPONDÊNCIA AO MAR
Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar,

De puro esforço, as velas são memória
E o porto e as casas
Uma ruga de areia transitória.

Sinto a terra na força dos meus pulsos:
O mais é mar, que o remo indica,
E o bombeado do céu cheio de astros avulsos.

Eu, ali, uma coisa imaginada
Que o Eterno pica,
Vou na onda, de tempo carregada,

E desenrolo...
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.

Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim ‑
Que onde acaba, o coração começa.

Começa pelo aro das estrelas
A compasso retido em mente pura
E avivado nos vidros das janelas.

Começa pelo peito das baías
A rosar-se e crescer na madrugada
Que lhe passa ao de leve as orlas frias.

E, de assim começar, é abstrato e imenso:
Frio como a evidência ponderada.
Quente como uma lágrima num lenço.

Coração começado pelos peixes,
És o golfo de todo o esquecimento
Na minha lembrança que me deixes,

E a rosa dos Ventos baralhada:
Meu coração, lágrima inchada,
Mais de metade pensamento.
Vitorino Nemésio (1901 – 1978),O Bicho Harmonioso. In:http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/12/correspondencia.ao.mar.aspx

ILHAS DE BRUMA
Ainda sinto os pés no terreiro
Onde os meus avós bailavam o pezinho
A bela Aurora e a Sapateia
É que nas veias corre-me basalto negro
E na lembrança vulcões e terramotos

Por isso é que eu sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas vão beijar a terra 

Se no olhar trago a dolência das ondas
O olhar é a doçura das lagoas
É que trago a ternura das hortênsias
No coração a ardência das caldeiras.

Por isso é que eu sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas vão beijar a terra

É que nas veias corre-me basalto negro
No coração a ardência das caldeiras
O mar imenso me enche a alma
E tenho verde, tanto verde a indicar-me a esperança.
José Ferreira. In: http://som_das_letras.blogs.sapo.pt/8837.html

RETRATO
Meu corpo é água,
Onda que vai e vem,
Abraça, foge, não para ...

No fundo, mágoa.

Meus olhos, água.
Fundura do mar salgado,
Quem sabe onde tem seu fim?

No fundo, mágoa.

Minh’alma é água,
Que canta, que chora e fala:
Doce cantiga das fontes,
Brando choro das ribeiras,
Marulho eterno das vagas ...

No fundo, mágoa.
Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), Horto Fechado e outros Poemas
In: Antologia de Poesia Açoriana

MAR COM POETA DENTRO
O corpo da ilha não tem nome
próprio de quem se rodeia de orvalhos antigos.
quando navega não tem
Rumo nem destino.
no cais a penumbra branca desce
sobre a viagem adormecida.

desconhece-se que poeta foi ver o mar por dentro.
mas sabe-se quem gratificou com sonhos
os muros da solidão.

Álamo de Oliveira (1945 - ).
In: http://livrariasolmar.blogspot.pt/2010/03/dia-mundial-da-poesia-alamo-oliveira.html

DA FLOR DO ARCO-ÍRIS AS PÉTALAS
Da flor do arco-
íris as pétalas
caem no mar ao longe abertas
        que um delíquio espasma

E o marítimo aceno
da asa de um barco
instila na alma
        como um veneno

o ingénuo sonho.
Eduíno de Jesus (1928 - ), Os Silos do Silêncio
In: http://www.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?m=05&y=2009&d=10

OS BÚZIOS
Deixados pelos Deuses sobre a areia
Os búzios são cofres com pedaços da noite
Pequenos transístores para as noticias do mar
Encontrados pelas crianças na praia
Os búzios são caixas de música
São os ouvidos petrificados dos peixes
E um búzio separa
As crianças dos Deuses
Emanuel Felix (1936-2004). A  Viagem Possível
In: http://www.vislumbresdaoutramargem.com/2009/07/os-buzios.html

POEMA DOS NÁUFRAGOS TRANQUILOS
Somos herdeiros dos quatro ventos
Sem uma vela para lhes dar
Temos amarras e temos lenços
Num cais de pedra para acenar.
Somos herdeiros da maresia
Que salga os olhos de olhar o mar
E temos rios de lava fria
Que se recusam a desaguar.
Somos herdeiros de uma lembranca
de tesouros afundados
e arpoamos a esperanca
na nossa morte reclinados.
Somos herdeiros de um rombo aberto
no nevoeiro secular tranquilos
naufragos do incerto
vamos morrer no mar.
Emanuel Félix (1936-2004). In: http://som_das_letras.blogs.sapo.pt/5695.html

DIA DE BALEIA
Agitação dos dias de baleia!
Marinheiros correndo para o porto.
Iguala o Universo num grão de areia
e o Nada é um doutor de olhar absorto.

A bomba que rebenta na vigia
sacode o ar num sobressalto de asas.
A vida igual de sempre dir-se-ia
outra na lida habitual das casas.

Mas à agitação se segue logo
uma ansiedade vã sobre a paisagem:
em cada coração crepita um fogo
à espera apenas de uma leve aragem.

Depois, qualquer sinal no horizonte
parece um barco – e uma baleia morta?
Um binóculo espreita, ali defronte,
E um vulto de mulher assoma à porta.

Inquieto, alguém pergunta: – Que é? Que foi?
Um coração lento cruza a dúbia praça;
reflecte a placidez do boi
a morna placidez da tarde baça.

Mas não há uma vela pelo mar!
As horas passam, moles, arrastadas…
A noite vem… Os botes sem chegar!
E um choro enche as casas desoladas.
Pedro da Silveira ((1922 — 2003).  In:  http://picodavigia.blogs.iol.pt/2010/04/28/dia-de-baleia-%E2%80%93um-poema-de-pedro-da-silveira/

ROMEIROS
Céu de chumbo! Escuta... Ave
Maria, cheia de graça...
No seu cantar arrastado
A romaria lá passa...

Acordam ecos da serra,
Ó quanta fé nessa voz!
Numa toada dolente:
Mãe de Deus, rogai por nós!
Ao escutá-la, comove-se
O coração. Que tristeza!
Anda naquelas palavras
Toda a dor da Natureza.
Dor deste céu que sufoca,
Pelos atalhos de lava
Cascalho cortando os pés,
Picanços de silva brava.
Dor desta terra em silêncio,
Quando se põe a tremer...
Falas ocultas da terra
O que estarão a dizer?
Dor de quantos cantando
Choram na voz comovida,
Nas desgraças que sofreram
Os prantos da sua vida.
E o rancho passa. Os romeiros
Dois a dois eles lá vêm...
Na procissão da tristeza
Por esses campos além.
Vêm descalços. Na cabeça
Um lenço grande, enramado,
A saca e as botas ao ombro
E o chaile posto a um lado.
Numa das mãos um bordão
E o terço para rezar,
Ao sol ardente ou à chuva
Não param de caminhar.
E esta Ilha é tão comprida...
Sete dias de jornada!
Não há capela da Virgem
Que não seja visitada.
Senhor Mestre de Romeiros,
Tão velhinho inda ali vai,
Beijam-lhe os outros a mão
Como filhos a seu pai.
Ó procurador das almas,
Reza por minha intenção.
Quantos sois? Eu rezarei
Por quantos no rancho vão.
E junto à voz dos romeiros
Acordam ecos da serra...
Irmãos! Uma Ave-Maria
Pela paz da nossa terra.
Armando Côrtes-Rodrigues  (1891-1971). In: Cozinha Tradicional de S. Miguel

A  UM CONSTRUTOR DE BARCOS QUE FOI MEU PAI
Os punhos que ergueste contra 
     um tempo de promessas 
     e a tua voz que não passou além 
     do cume dos nossos montes adormecidos, 

MEU PAI:  os barcos que fizeste 
     eram pequenos de mais para viajar 
     o teu sonho 
     a tua raiva 
     o teu cansaço 

     tu fabricante de viagens 
     amordaçadas 
     arquitecto de ilhas 
     naufragadas

MEU PAI:  sei bem do tempo 
     em que os carangueijos roíam as raízes 
     da tua ilha - apodrecendo 
     e os barcos murchavam 
     na baía 
     (recordo que a viola perdeu 
     a voz num prego da parede.) 
     E daí 
     o teu barco de tédio e cansaço 
     único a não esbarrar 
     contra os muros das ilhas vizinhas.
Urbano Bettencourt (1949 - ).  
In: http://www.rea.pt/forum/index.php?topic=420.0


ELA TINHA OS OLHOS VERDES
«Ela tinha os olhos verdes
da cor das águas do Porto Pim
O anel
podia ser de Margarida
Clark Dulmo
Ainda vai chegar muita gente à Semana do mar
Sossegam as traineiras sobre um mar de luzes
e por cima das traineiras 
sobre a nossa noite grasnavam garajaus
Descem
por uma escada em caracol
outras mulheres 
que o sol e o mar nos entregam
cada dia mais formosas
Depois da Festa
(o melhor, além das moças, 
bem moças e bem gentis,
mulheres de fala cantante,
foi quando as velas se ergueram nas canoas baleeiras
lembrando as asas de um pássaro)
depois da Festa
vou caminhar sobre a lava arrefecida 
na costa da ilha negra
ilha da grande montanha.»
Mário Machado Fraião (1952-2010). Os Barcos Levam Nomes de Mulheres)

II
O isolamento e o  sentimento de solidão atlântica que impregna a alma e a vivência do ilhéu. O sentimento de melancolia, a apetência reflexiva  e o angustiante drama existencial.

OCEAN NOX
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...    
Antero de Quental (1842-1891). Sonetos

O  PALÁCIO DA VENTURA
Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Antero de Quental(1842-1891). Sonetos

REDENÇÃO
Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e intimo alento
Das cousas mudas; salmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a immensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!
Antero de Quental (1842-1891). Sonetos

AR DE INVERNO
Aves do mar que em ronda lenta
Giram no ar, à ventania,
Gritam na tarde macilenta
A sua bárbara alegria.

Incha lá fora a vaga escura,
Uiva o nordeste aflitamente.
Que mágoa anónima satura
Este ar de Inverno, este ar doente?

Alma que vogas a gemer
Na tarde anémica, de vento,
Como se infiltra no meu ser
O teu esparso sofrimento!

Que viuvez desamparada
Chora no ar, no vento frio
Por esta tarde macerada
Em que a esp’rança se esvaiu!”..
Roberto de Mesquita (1871-1923)Almas Cativas e Poemas Dispersos


SPLEEN
Dezembro, dia pluvioso. Vem
Deste céu de burel um spleen mortal
Onde as almas se atolam como alguém
Que caísse num vasto lodaçal.

Olho em torno de mim: as cousas mesmas
Têm um ar de desgosto sem remédio...
E as horas vão, morosas como lesmas,
Rastejando por sobre o nosso tédio.

O véu cinzento e denso que se espalha
Lá por fora, empanando as perspectivas.
Dir-se-á também que as almas amortalha
E afoga as suas vibrações mais vivas.
Roberto de Mesquita (1871-1923)Almas Cativas e Poemas Dispersos


AR DE DIA SANTO
(Versos dum isolado)
Estou hoje sombrio, doente, aborrecido,
Invadiu-me não sei que pessimismo azedo;
O dia está tão triste! e eu sinto-me oprimido
Sob o nevoento céu, grosso como um rochedo.

Fechou a oficina aqui defronte, o dono
Foi passear. Odeio este ócio domingueiro,
E um piano que tem levado o dia inteiro
A gemer uma valsa horrível, que faz sono.

No Imóvel infiltro a minha hipocondria.
Vejo-o a bocejar, tristonho, endomingado..
Frenético, fito a alva casaria,
O macadame poeirento e quase intransitado.

O mar adormeceu desoladoramente,
Parece-me um deserto. Eu lembro desgostoso
Terras que não alcança o meu olhar saudoso,
As grandes capitais, o decantado Oriente.

Vasta separação! Aumenta a minha mágoa,
Porque fico a evocar lindíssimos países.
É cada vez mais triste este deserto de água,
Que atravessam no entanto os ricos, os felizes!

O vago marulhar inspira-me saudades,
Como se nele viesse o eco enfraquecido,
Nostálgico, da voz remota das cidades
Perdidas na amplidão desse ermo indefinido.

E vou talvez viver, morrer nesta prisão!...
Anoitece, chuvisca. Eu fumo, desolado.
No entanto passa a rir um grupo endomingado,
Contente no seu meio e isento de ambição…
Roberto de Mesquita (1871-1923)Almas Cativas e Poemas Dispersos

ÀS GRADES DA PRISÃO
Às grades da prisão, olhos extasiados
Vêem descer o Sol sobre o mar de metal.
Na tarde de âmbar há murmúrios espalhados
Como preces da Terra à estrela vesperal…

No horizonte rutilante, a toda a vela
Passa um navio; é todo de oiro e de rubis…
Onde vais, onde vais, brilhante caravela
Do rei poeta dum quimérico país?

É triste o alcácer, com salões frios e anosos,
Como as igrejas cheios de ecos cavernosos,
Com grossas portas de mosteiro medieval.

Mas desse interior taciturno, afastado,
Duma estreita janela, olhos extasiados
Vêem descer o sol sobre o mar de metal…
Roberto de Mesquita (1871-1923)Almas Cativas e Poemas Dispersos

TARDE SONHADORA
Expira a tarde; o mar entorpecido
Tem um canto monótono que embala,
Um como que nostálgico gemido
Que do Ausente, do Além me fala…

Desmaia o horizonte elanguescido,
Com frouxos tons de pérola e de opala,
Neste esvair de luz que doce exala
Um mágico amavio indefinido…

E eu sinto errar na tarde de veludo
Uma alma que medita, esparsa em tudo,
Um ser espiritual que não descubro.

É um ser feminil, num sonho imerso,
Que como vago aroma, anda disperse
Neste tarde meiguissíma de Outobro…
Roberto de Mesquita (1871-1923)Almas Cativas e Poemas Dispersos

FRÉMITO
Enquanto reedifico
a linha geral do meu sonho.

Enquanto,a sós comigo,
sobreponho,
uma a uma,as pedras da minha destruída torre
de marfim,meu refúgio antigo.

Enquanto nos meus lábios morre
a palavra para que não
possa inventar pronúncia.

Enquanto o chão
é simplesmente um rio
para a navegação
do navio
de papel em que me vejo
ainda amarrado ao cais,
minha casa.

E tudo o mais:
um frémito de asa
Entre o desejo
e  a renúncia
Eduíno de Jesus (1928 - ). Os Silos do Silêncio
In: http://www.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?k=FREMITO-Eduino-de-Jesus.rtp&post=38833

DÚVIDA ANTIGA
pronto  serenamente pronto
a olhar os teus olhos debruçados
sobre esta janela de mar
e tudo assim mais quieto  alongo
as minhas mãos azuis.
                                        debruados
estão os teus cabelos a saltar
ondeando na amplitude aberta
para lá dos nomes e dos países.

que fúria de espanto nos acalenta 
– os teus olhos debruçados nas felizes
horas que a vaga desperta –?
ue razões ou mágoas nos atormentam
ainda?    
belo é o teu ventre cor de fogo
pronto  serenamente pronto a explodir.

o nosso barco de aventuras e madeira
ainda flutua como a emigração do povo. 
Álamo Oliveira (1945). In: http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=5350

OLHARES
toda a manhã a vida esteve cinzenta
com a alma molhada e uma tristeza
duvidosa escorrendo do olhar.
a tarde chegou de cabelos escorridos prometendo
deitar-se na cama da preguiça
sem vontade de se despir nem de tirar
os sapatos da angústia.
a vida sabe que não pode abrir a porta
e fugir para o outro lado do etéreo.
pobres e ricos caem como soldados vagabundos
na vala da vida.    o catrapiler dos sonhos
cobrirá     com pesadelos     o mundo inteiro.
por isso    vai amanhecer outra vez
com a vida cinzenta    a alma molhada
e um olhar triste caindo como
as telhas da casa    partindo-se.
Álamo  Oliveira (1945)      
In: http://www.pnetliteratura.pt/cronica.asp?id=5222

III
O apego às raízes, o sentimento de nostalgia e saudade.

A M.E.
Terra de exílio! Aqui também as flores
Têm perfume e matiz; também vicejam
Rosais no prado, e pelo prado adejam
Zéfiros brandos suspirando amores.

Também cá tem a terra seus primores;
Pelos vales as flores rumorejam;
Tem a noite seus suspiros, que a bafejam,
E o céu tem sus luz e seus ardores.

Em toda a natureza há amor e cantos,
Em toda a natureza Deus se encerra ...
E contudo esta é a causa dos meus prantos!

Eu sou bem como à flor que não descerra
Em cli ma alheio. Que importamteuscantos?
Não és, terra do exílio, a minha terra!
Antero de Quental( 1842-1891).  Raios de extinta luz

SEPULTURA ROMÂNTICA
Ali, onde o mar quebra, num cachão
Rugidor e monótono, e os ventos 
Erguem pelo areal os seus lamentos, 
Ali se há-de enterrar meu coração. 

Queimem-no os sóis da adusta solidão 
Na fornalha do estio, em dias lentos; 
Depois, no inverno, os sopros violentos 
Lhe revolvam em torno o árido chão... 

Até que se desfaça e, já tornado 
Em impalpavel pó, seja levado 
Nos turbilhões que o vento levantar... 

Com suas lutas, seu cansado anseio, 
Seu louco amor, dissolva-se no seio 
D'esse infecundo, d'esse amargo mar!
Antero de Quental( 1842-1891). Sonetos  

A UMA AMIGA
Aqueles que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo...
Estendo os bracos e nas trevas beijo
Visões que a noite evoca o sentimento...

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos... que eu invejo...
Passam por mim... mas como que tem pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Não resta uma flor só, uma só rosa...
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!


Tu só foste fiel - tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes...
Para ver o meu mal... e escarnecê-lo!
Antero de Quental( 1842-1891). Sonetos  


ABANDONADAS
A velha casa, onde eu morei outrora
e que há muito está desabitada,
silenciosa envolveu-me, ao ver-me agora,
num triste olhar de amante abandonada.

Com que amargor no íntimo lhe chora
uma alma sensitiva e ignorada,
que não tem voz para queixar-se, embora
se veja só, de todos olvidada!

Casa deserta e fria, que envelheces
ao desamparo sem uma afeição,
bem sinto que me vês, que me conheces

e relembras os dias que lá vão…
Eu esqueci-te, amiga, e tu pareces
toda magoada dessa ingratidão.
Roberto de Mesquita (1871-1923).  Almas Cativas e Poemas Dispersos

RUINAS 
Como sois tristes, casas derrocadas,
Com vegetais daninhos por mobílias,
Esquecidas de todos, desoladas,
Sem o vivo bulício das famílias!

Enquanto os transeuntes vos encaram
Como coisas inertes e banais,
Com que amarga saudade vós cismais
Nos que em remotos dias nos amaram!

No vosso seio, ‘squeletos carcomidos,
Como um velho doente e olvidado,
Geme asilada a alma do Passado,
Mas raros são os que ouvem seus gemidos.
Roberto de Mesquita (1871-1923). Almas Cativas e Poemas Dispersos

UNIVERSALIDADE I
Enquanto se detém o vosso olhar
à tona dos aspectos, impotente,
no âmago de tudo, claramente,
eu descubro um espirito a cismar.

Deleita-se a minha alma a respirar
os afectos das coisas: a dolente
nostalgia dum cerro olhando o mar,
a oração das paisagens ao morrente

Sim, eu respiro como essência estranha
a orfandade que exala uma montanha
quando o outono a junca de destroços.

E esses casais, dispersos pelo monte,
sinto-os pensar, cravando no horizonte
os seus olhos humanos como os nossos
Roberto Mesquita (1871-1923).Almas Cativas e PoemasDdispersos

TERRA DO MEU ORGULHO
Bordo do “Vasco da Gama”. À vista de ilha de S. Miguel
Mar largo. O navio estremece.
A alma de Frei  Gonçalo erra sobre este mar...
Sírius, na proa, ao alto, o roteiro esclarece.
Brilha Vénus à ré. Começa a dealbar.

Sinto na boca impura o aroma de uma prece.
O coração, ansioso, é um sino a replicar ...
Céu e mar são um templo azul, que resplandece!
- De  joelhos! San Miguel surge em seu verde altar!

Ó terra de meus pais! A arca do meu afecto ...
Mais linda  das que eu vi, de olhar saudoso e inquieto,
Buscando-te rival entre os jardins do mundo ...

Terra do meu orgulho, e último bem que espero!
Mãe de Bento Góis e mãe de Santo Antero ...
- Beijo, a alma de rojo, o teu ventre fecundo!
Raposo de Oliveira (1881-1933). In: Antologia de Poesia Açoriana

AQUELE CAIS ALI ...
Aquele cais ali, agudo e nu,
Que o mar percute e coroa de asas,
Sabes? Pareces-ma tu,
Adiada – e, ao fundo, casas.

Tu, não mulher salva ou perdida,
Nem tu, esperança de pedra,
Mas terra da minha vida
Onde o mar medra.

O cais vazio!
O que eu deixei no cais, despachado e chorando:
Meu vulto de menino frio
Que mal aquece um “até quando?”.

A linha gris, rasa e arredada
Em minhas lágrimas tão nuas,
E minha ausência procurada
(Um pouco tarde) pelas tuas.

Assim um “teu” num “meu” insiste.
Que mãe anónima adianta
Cabelo longo e riso triste
À filha feita de tanta
Coisa que não existe?

Ao cais que eu penso
Não chega vela, nem jamais
Asa ou ponta de lenço
Ensina porto ou saudade
- Que é pura pedra sem idade,
Dentro de mim, o cais.
Vitorino Nemésio (1901-1978).Eu Comovido a Oeste (In: Antologia de Poesia Açoriana)

ÚLTIMO REGRESSO
Com os seus malvões, a amoreira, a magnólia,
– estas duas talvez da minha idade –
o pátio à frente imitava
uma varanda corrida sobre o mar, a oeste.
Subo o caixilho da janela e fico a olhar
para isto que tanta vez eu vi mas hoje sinto
alheio, ou, quem sabe?, inimigo.
Os retratos ainda estão, como estavam,
entre ouros de moldura nas paredes;
e a cadeira-de-embalar (com um braço partido)
dorme entre sombras no canto onde a deixaram.
Volto-me outra vez para a janela aberta.
Liso, calado, azul nítido, o mar
é, sem mais nada, mar até ao último fim.
Um instante parado
entre os craveiros que resistem no quintal,
um gato espreita-me,
estrangeiro que lhe sou em minha casa.
Pedro da Silveira (1922-2003). In: http://www.youtube.com/watch?v=1p6niHkeSUo

LNHAS PARA UM RETRATO DE POETA QUANDO JOVEM
Este poema é das saudades e do sol-posto.
E da procissão do Senhor, de colchas nas varandas.
E de quando eu tinha as mãos postas
que a minha mãe veio e me pôs umas asas brancas.
E das horas gastas esperando o teu regresso.
E das idas clandestinas e do caminho andado.
E da janela, aberta para os muros, que enchia
de sombras as recordações do meu quarto.
Este poema é dos vidros partidos
pelas pedras que atirei aos meus amigos
nos combates havidos nas travessas.
E da chuva que caiu nas colchas das varandas.
E das mãos que vieram tirar-me as asas brancas.
E dos olhos de minha mãe, quando eu parti para longes terras...
Eduino de Jesus (1928 -) . In: http://www.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/?m=05&y=2009&d=10

CAIS DA SAUDADE
No cais da saudade
Morre um sonho mais;
Sou eu, de sonho, indo
Para nunca mais.

Ponho os olhos de água
Quando morre um sonho:
Sal de água no rosto
Para um outro sonho.

A mágoa vem nesse
Breve fio de água:
Choro um sonho e ponho
Outro sonho à água.
Eduíno de Jesus (1928 -) O Rei da Lua. In: Antologia de Poesia Açoriana

AS RAPARIGAS LÁ DE CASA 
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar

(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor 
do meu amor pelas raparigas lé de casa.
Emanuel Felix (1936-2001). In: http://conhecer.no.sapo.pt/poesia1000.htm

NA CASA DE CAMPO 
naquela onde mais e menos vivo
a minha mãe prevalece e reza
como se me não tivesse
em maio de 45.

casa de campo e da ilha
minha febre água de bica
conrrendo nos meus sábados de lá ir
escutar os milhos escutar o povo.

mais e menos poeta
as noivas procuram-me de enxoval
nos braços
e eu desenho-lhes os sonhos
risco-lhes as toalhas e
vejo-as ir à igreja casar.

na casa do campo sou asceta.
cresço linho de bordar
ouço os sinos vou à missa
e como povo canto deus
para me cansar.

é nisto que reside
o meu correr de vivo o meu verbo ser-me.
Álamo de Oliveira (1945 -). In: http://www.rtp.pt/icmblogs/rtp/comunidades/index.php?k=Dois-poemas-de-Alamo-Oliveira.rtp&post=38826

ENQUANTO O MAR SE RENOVA
O gin-tónico
pode ser também um bar de Lisboa
mesmo ao pé do mar
A luz do sol
chegava duma praça liberal
estendia-se pelo chão
resplendente
inundava as mesas
O velho conta histórias de espiões
com certa nostalgia
Acerca disso
li algures um texto interessante
e gostei muito
acerca disso e das prostitutas do Cais do Sodré
O silêncio
comeu
vagarosamente
a alma deste porto
e dos outros portos do mundo
Ele paira
sobre as docas e os mares
como a pesada mão dum deus ameaçador
e brutal
Procuramos a noite
como todos os marinheiros
na certeza de que a terra é o melhor sítio aonde chegar
enquanto prosseguem as viagens interplanetárias
sem que se vislumbre a Ilha dos Amores
nem Calecute nem nada
Houve um que disse:
«Vou-me embora pra Pasárgada»
Eu não vou

O Tejo continua a ser o grande rio.
O navio andava sobre os campos
Nessa tarde ensolarada
mesmo abrasadora
tivemos uvas e ameixas
recordámos algumas tradições
e depois falámos de mulheres
O mar adormecera com tanto calor
e azul dominava todas as cores
O mergulho
a conversa depois da praia
aquelas tipas nuas mesmo à nossa frente
Durante o dia
esplendoroso
foi o cheiro de muitos violoncelos
O silêncio era quente
como as nossas mãos
e as palavras
— O navio andava sobre os campos
Eternamente.
Mário Machado Fraião, As ruas demoradas: Sete anos de poesia
In: http://atlantices.blogspot.pt/2012/07/en

MÃE ILHA - I
Limão aceso na meia-noite ilhada,
O relógio na torre da Matriz
Põe o ponteiro na hora atraiçoada
Da ilha que me deram e eu não quis.
    
Mas, ó de alvos umbrais Ponta Delgada!
Meu prefixo de pastos, a raiz
É de calhau e de onda encabritada:
Um triz de hortênsia e estala-me o verniz.
    
Atamancada em fama a tosca ilhoa,
Só na praça e no prelo é de Lisboa,
Seu gesto, cãibra de garça interrompida.
    
No mais, osso campesino e duro
É fervor, é fogo e fé que juro
Ao lume e às flores da Graça recebida.
Natália Correia (1923-1993). Sonetos românticos,

MÃE ILHA – III
Foi isto outrora na ilha das fadas
Embrumada em hortênsias. Não sonhei.
Sobre as lagoas de águas encantadas
Dormiam os fetos e não havia lei.

As vacas, nas colinas esfumadas
Ruminavam o eterno. Ali folguei
Na festa das crianças coroadas.
Reinava o Amor e não havia Rei.

Dentro da música a casa repousava.
Minha mãe docemente penteava
Os meus cabelos e caíam pérolas.

Rumores longínquos da infância oclusa,
Que num desvão da alma ainda debruça
Uma varanda sobre um mar de auréolas.
Natália Correia (1923-1993).Sonetos românticos,

ESTE CHÃO QUE ESTREMECE
O cacilheiro
pôs-se a trebidar com maior intensidade
Vai
vai lentamente rasgar as ondas de um mar sujo
Eu tenho a memória de um outro mar
outro regresso
(as luzes, as aves pousadas nas embarcações.
Fica sempre longe essa baía,
por isso a mais desejada pelos pensadores
ou pelos traficantes da aventura).
Passa um barco à vela
um snipe?  um vouga?
Já nada disso existe
Apenas este chão que estremece
esta moça mestiça de flor na mão.
Mário Machado Fraião (1952-2010). Os barcos levam nomes de mulheres.

A PESADA PORTA
A casa tinha uma porta
que dava para a América
No Verão
antes do cinema
A casa tinha um grande bengaleiro
gatos no quintal ao pé da roseira
dois andares
uma torre sobre o canal mais S. Jorge ao fundo
Em baixo
no sombrio saguão de azulejo quebrado e velho
em  noites com Estrela Polar
Ursa Maior e Cassiopeia sem vento
a pesada porta dava para a América.
Mário Machado Frião (Inédito). In: http://www.youtube.com/watch?v=qaLcoGCl_1E