Durante a quaresma a ilha de São Miguel é percorrida por grupos de homens caminhando e rezando em voz alta, numa toada arrastada e dolente. São os “Romeiros”. Ranchos de homens que durante uma semana percorrem a pé a ilha, partem num sábado e regressam no domingo seguinte, rezando em coro durante todo o percurso pais-nossos e avé-marias e visitando todas as igrejas e capelas que venerem a Virgem Maria.
Os romeiros caminham sempre em duas filas empunhando bordões de romeiro, com sacas de pão a tiracolo, grandes xailes de lã com franjas pelos ombros, lenços enramados ao pescoço, um terço ao pescoço outro na mão para as orações. À frente do grupo, e a meio das duas filas, vai o “porta-cruz”, sempre o mais novo do rancho. No fim da fila vão o mestre dos romeiros e o procurador de almas. Este último recebe os pedidos de orações de pessoas que, das portas e janelas, vêem o rancho passar. Quem pede ao «procurador das almas» pais-nossos e avé-marias por sua própria intenção ou pelos seus defuntos, terá também de rezar um número de pais-nossos e avé-marias idêntico ao número de romeiros do rancho. Por isso o pedido é sempre precedido pela pergunta: “Irmãos (designação dada aos romeiros), quantos são?”À noite, os romeiros pernoitam em igrejas, escolas ou casas de pessoas que se oferecem para receber.
Esta tradição religiosa única remonta ao século XVI e teve a sua origem nas peregrinações do povo pelas igrejas e capelas da ilha, suplicando a protecção de Maria quando, naquele tempo, violentos terramotos e erupções vulcânicas arrasaram Vila Franca do Campo, então capital dos Açores, e atingiram gravemente a Ribeira Grande.
Armando Côrtes-Rodrigues ( 1891-1971) poeta, dramaturgo e etnólogo micaelense nascido em vila Franca do Campo, que fez parte da Geração Orpheu, transmite-nos a profunda mística religiosa que envolve a penitente caminhada dos Romeiros no seu belo poema com o mesmo título.
Romeiros | |
Céu de chumbo! Escuta ... Avé Maria, cheia de graça ... No seu cantar arrastado, A romaria lá passa ... Ao escutá-la, comove-se O coração. Que tristeza! Anda naquelas palavras Todo a dor da natureza. Dos testa terra em silêncio, Quando se põe a tremer ... Falas ocultas da terra O que estão a dizer?! E o rancho passa. Os romeiros, Dois a dois eles lá vêm ... Na procissão da tristeza Por esses campos além. Numa das mãos um bordão E o terço para rezar, Ao sol ardente ou à chuva Não param de caminhar. Senhor mestre dos romeiros, Tão velhinho inda ali vai, Beijam-lhe os outros a mão Como filhos a seu Pai. Acordam ecos na serra, Ó quanta fé nesta voz! Numa toada dolente: Mãe de Deus, rogai por nós! | Dor deste céu que sufoca, Pelos atalhos de lava Cascalho cortando os pés Picanços de silva brava. E dor de quantos, cantando, Choram na voz comovida, Nas desgraças que sofreram Os prantos da sua vida. Vêm descalços. Na cabeça Um lenço grande, enramado, A saca e as botas ao ombro E o xaile posto a um lado. E esta ilha tão comprida ... Sete dias de jornada! Não há capela da Virgem Que não seja visitada. O Procurador das almas Reza por minha intenção. Quantos sois? Eu rezarei Por quantos no rancho vão. E junto à voz dos romeiros Acordam ecos da serra ... Irmãos! Uma Avé-Maria Pela paz da nossa terra. In: Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel |
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