segunda-feira, 4 de março de 2013

Tradições de S. Miguel – Romeiros


Durante  a quaresma  a  ilha de  São Miguel  é  percorrida por grupos de homens caminhando e rezando em voz alta, numa toada  arrastada  e dolente. São os “Romeiros”. Ranchos de homens que durante uma semana percorrem a pé  a ilha, partem  num sábado e regressam no domingo seguinte, rezando em coro durante todo o percurso pais-nossos e avé-marias e visitando  todas as igrejas e capelas que venerem a Virgem Maria. 
Os romeiros caminham sempre  em duas filas  empunhando bordões de  romeiro, com sacas de pão a tiracolo, grandes  xailes de lã com franjas  pelos ombros, lenços enramados ao pescoço, um terço  ao pescoço outro na  mão para as orações. À frente do grupo, e a meio das duas filas, vai o “porta-cruz”, sempre o mais novo do rancho. No fim da fila  vão o mestre dos romeiros e o procurador de almas. Este último recebe os pedidos de orações de pessoas que, das portas e janelas, vêem o rancho passar.  Quem pede ao  «procurador das almas» pais-nossos e avé-marias por sua própria intenção ou pelos seus defuntos, terá também de rezar um número de pais-nossos e avé-marias idêntico ao número de romeiros do rancho. Por isso o pedido é sempre precedido pela pergunta: “Irmãos (designação dada aos romeiros), quantos são?”
À noite, os romeiros pernoitam em igrejas, escolas ou casas de pessoas que se oferecem para receber.
Esta  tradição religiosa  única  remonta  ao século XVI e teve a sua origem nas peregrinações do povo pelas igrejas e capelas da ilha, suplicando a protecção de Maria  quando, naquele tempo,  violentos terramotos e erupções vulcânicas arrasaram Vila Franca do Campo, então capital dos Açores,  e  atingiram  gravemente a  Ribeira Grande. 
Armando Côrtes-Rodrigues ( 1891-1971)  poeta, dramaturgo e etnólogo micaelense nascido em vila Franca do Campo, que fez parte da Geração Orpheu, transmite-nos  a profunda mística religiosa que envolve a penitente caminhada dos Romeiros no seu belo poema com o mesmo título.


Romeiros
Céu de chumbo! Escuta ... Avé
Maria, cheia de graça ...
No seu cantar arrastado,
A romaria lá passa ...

Ao escutá-la, comove-se
O coração. Que tristeza!
Anda naquelas palavras
Todo a dor da natureza.

Dos testa terra em silêncio,
Quando se põe a tremer ...
Falas ocultas da terra
O que estão a dizer?!

E o rancho passa. Os romeiros,
Dois a dois eles lá vêm ...
Na procissão da tristeza
Por esses campos além.

Numa das mãos um bordão
E o terço para rezar,
Ao sol ardente ou à chuva
Não param de caminhar.

Senhor mestre dos romeiros,
Tão velhinho inda ali vai,
Beijam-lhe os outros a mão
Como filhos a seu Pai.

Acordam ecos na serra,
Ó quanta fé nesta voz!
Numa toada dolente:
Mãe de Deus,  rogai por nós!




Dor deste céu que sufoca,
Pelos atalhos de lava
Cascalho cortando os pés
Picanços de silva brava.

E dor de quantos, cantando,
Choram na voz comovida,
Nas desgraças que sofreram
Os prantos da sua vida.

Vêm descalços. Na cabeça
Um lenço grande, enramado,
A saca e as botas ao ombro
E o xaile posto a um lado.

E esta ilha tão comprida ...
Sete dias de jornada!
Não há capela da Virgem
Que não seja visitada.

O Procurador das almas
Reza por minha intenção.
Quantos sois? Eu rezarei
Por quantos no rancho vão.

E junto à voz dos romeiros
Acordam ecos da serra ...
Irmãos! Uma Avé-Maria
Pela paz da nossa terra.

In:
Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel


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